Em 1990, Armindo de Sousa, no seu seminal trabalho sobre as cortes medievais portuguesas, elaborou uma extensa anotação sobre um documento em papel, de natureza invulgar, que encontrou na Torre do Tombo, com a cota Suplemento de Cortes, maço 2, doc. 19bis. Nesse caderno, truncado, e onde o autor se identificava como Álvaro Fragoso, eram alistados os vários documentos que se encontravam no cartório camarário eborense e que continham sobretudo capítulos de cortes, sendo o seu conteúdo resumido sumariamente. Foi redigido nos anos finais do século XV. Inicia-se esse documento no fólio xbij, já a meio do resumo de capítulos das cortes de D. Duarte de 1433, e termina no verso do fólio xxxij, com os resumos dos capítulos das Cortes de Lisboa de 1498, constituindo assim um caderno de 8 bifólios.
Ora, Armindo de Sousa aventara, com precisão, que se trataria de um instrumento de trabalho, mas não acertou quanto ao seu objectivo. Arriscara o insigne autor que se trataria de um documento que serviria à cidade em ulteriores cortes para elaborar os seus agravos e reagir de forma expedita às negociações com outras representações parlamentares e com a Coroa.
Um outro documento existente na Torre do Tombo lança uma primeira pista sobre a função daqueles resumos. Trata-se do Núcleo Antigo 15. O seu confronto com o primeiro documento que descrevemos apresenta uma clara afinidade paleográfica e material. A escrita muito característica de Álvaro Fragoso salta à vista, com a sua rejeição do comum encadeamento das letras numa cadência regular muito estilizada, singela e angulosa que evidencia uma perícia invulgar. A numeração deste segundo documento inicia-se no fólio Lj e termina no fólio [Cbij] e uma comparação dos dois documentos confirmou terem feito parte de uma unidade primeva à qual foram sonegados ainda os fólios xxxiij a L... As marcas de água nos dois documentos são iguais (exceptuando o último caderno da segunda espécie) e as medidas das folhas são praticamente iguais com diferenças nos vários fólios inferiores a 5mm.
O que contém este Núcleo Antigo 15? Documentos régios outorgados à câmara de Évora: privilégios, respostas a agravos e sentenças, bem como ordenações e leis régias; mas também documentos de natureza memorialista concernente à moeda, pesos e medidas em vigor desde o tempo de D. Dinis. Confirma-se assim a convicção de Armindo de Sousa de que Álvaro Fragoso laborara intensamente na produção de um valioso instrumento de trabalho. Mas, com que fim?
No âmbito da reforma dos forais iniciada em 1496, trabalhava-se afincadamente na câmara de Évora na viragem do século. Era necessário negociar com a representação régia as novas cláusulas foraleiras e precaver os privilégios da cidade. Um homem, em particular, assumiu as rédeas do processo da parte da câmara de Évora e da região. Era precisamente Álvaro Fragoso, cuja peculiar caligrafia o trai num terceiro documento que encontrámos: os apontamentos que coligiu sobre a reforma do foral eborense, em particular sobre os novos preços cobrados pelos rendeiros da portagem na cidade e que, a seu ver, em muito prejudicavam os seus moradores (TT, Gavetas, XX-11-38 — o papel, dimensões e marca de água diferem dos outros dois documentos). O que nos interessa para o caso são os instrumentos que ele produziu no âmbito desta negociação com a Coroa. A dado passo, no verso do terceiro fólio deste último documento, a propósito das “cousas que se mostra de que se leua portajem”, Fragoso é claro: “porque no cartoreo e arcas da camara desta çidade se nom acha outra escritura a jsto tocante senom este antigoo e verdadeyro forall senpre guardado e costumado”, aludindo então expressamente a diversos diplomas régios que defendiam a posição eborense, “O quall priujllegeo e cartas delle com a confirmaçam de vosa alteza a dicta çidade aquy apresenta”.
Verificamos assim, à luz das características paleográficas, que o Suplemento de Cortes maço 2, doc. 19bis e o Núcleo Antigo 15 foram redigidos por Álvaro Fragoso, enquanto representante da cidade de Évora, para defender os interesses da câmara no âmbito das negociações para a emissão de um novo foral, e para além delas, inclusivamente num âmbito regional. É que Álvaro fragoso era também, já em Novembro de 1500, “procurador emlegido pera os feitos dos foraees dos povoos e lugares da comarca d’antre Tejo e Odiana” num feito que corria entre o concelho de Odemira contra o Conde de Odemira e, mais tarde, em Julho de 1503, também o procurador da câmara de Évora num pleito que correra no despacho dos feitos dos forais, portagens e direitos reais dos Reinos e que opunha a edilidade eborense ao alcaide-mor da cidade, D. Henrique Henriques.
São assim três documentos com percursos arquivísticos muito diversos e que convergiram ao longo do tempo para uma única instituição, o Arquivo Nacional, com partida em Évora e hipotéticas passagens por Santarém e Merceana (de acordo com as indicações arquivísticas apostas nos primeiros dois documentos), até chegarem à capital do Reino, e agora unidos por um fio condutor comum, o traço de Álvaro Fragoso. O seu percurso individual bem como o dos documentos que ele redigiu merecerão um estudo mais acurado no futuro.